A Academia Brasileira de Letras (ABL) testemunhou um marco histórico na noite da última sexta-feira, 7 de novembro, com a posse solene da escritora Ana Maria Gonçalves na cadeira de número 33. A aclamada autora do romance “Um defeito de cor” não apenas se tornou a décima terceira mulher a integrar a venerável instituição, fundada em 1897, mas também, de forma inédita e profundamente significativa, a primeira mulher negra a ocupar um posto entre os chamados imortais. A chegada de Ana Maria Gonçalves à Casa de Machado de Assis foi celebrada por um discurso repleto de emoção e de forte conteúdo, dedicando o momento à memória de seus antepassados e às suas raízes. Ela iniciou sua fala, após uma calorosa salva de palmas, com a reverente saudação: “Benção, mãe. Benção, pai.”, sublinhando a profunda conexão com sua ancestralidade. A Trajetória da Cadeira 33 e a Exclusão Feminina Em sua oratória, a nova acadêmica revisitou a história da cadeira 33, relembrando os literatos que a precederam. O fundador, Domício da Gama, jornalista, diplomata, contista e cronista, nascido em Maricá em 1862, completaria cem anos de seu falecimento no dia seguinte à posse. Ana Maria Gonçalves também destacou o legado de Evanildo Bechara, renomado linguista, de quem herdou a posição. Entre 1954 e 1985, Bechara publicou mais de duas dezenas de obras, sendo a “Moderna Gramática Portuguesa” uma das mais conhecidas. Ele desempenhou um papel crucial na elaboração do novo acordo ortográfico, sendo reconhecido como um dos maiores estudiosos da língua portuguesa no Brasil. A escritora aproveitou o ensejo para abordar a histórica exclusão das mulheres na Academia. Ela recordou que “a não admissão de mulheres foi inicialmente um acordo entre cavalheiros, já que não havia nada impeditivo no estatuto”, fazendo alusão à candidatura da escritora Amélia Beviláqua, vetada em 1930. Após a alteração do estatuto que permitiu a entrada feminina, Ana Maria citou as pioneiras que abriram caminho: Rachel de Queiroz Lygia Fagundes Telles Nélida Piñon Zélia Gattai Ana Maria Machado Rosiska Darcy de Oliveira Fernanda Montenegro Lilia Schwarcz Miriam Leitão Em um trecho marcante, ela afirmou: “Depois do apagamento de Júlia Lopes de Almeida, das candidaturas negadas de Amélia Beviláqua e Diná Silveira de Queiroz, viemos nós: Raquel, Lygia, Nélida, Zélia, Ana, Cleonice, Rosiska, Fernanda, Lília, Miriam e eu. Ainda somos poucas para tanto trabalho de reconstrução do imaginário sobre o que representamos.” Ela também expressou sua gratidão à ancestralidade, que considerou uma “fonte inesgotável de conforto, fé, paciência e sabedoria.” A Força da Representatividade Negra na ABL A escritora refletiu com emoção sobre a sub-representação negra na ABL e a urgência de ampliar as vozes dentro da instituição. Ela lembrou que, por um longo período, o acadêmico Domício Proença foi o único membro negro, e que a negritude de Machado de Assis foi negada por muito mais tempo. Ana Maria Gonçalves reconheceu que o debate gerado pela candidatura de Conceição Evaristo em 2018 foi fundamental para sua própria chegada. “A discussão em torno da candidatura de Conceição Evaristo, em 2018, contribuiu para que eu esteja aqui hoje. Fez com que a Academia se olhasse no espelho e percebesse o quanto ainda falhava em representar todas as línguas faladas pelo nosso povo.” Ao final de seu discurso, a nova imortal reafirmou seu compromisso com a diversidade e a abertura da Academia. “Cá estou eu, 128 anos depois de sua fundação, como a primeira escritora negra eleita para a Academia Brasileira de Letras, falando português e escrevendo a partir de noções de oralidade e escrevivência. Assumo como missão promover a diversidade nesta Casa, abrir suas portas ao público — verdadeiro dono da língua — e ampliar o empenho na divulgação e promoção da literatura brasileira.” Citando pensadoras negras como Neusa Santos e Chimamanda Adichie, a escritora sublinhou o poder da literatura na construção de identidades: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, mas também a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades e venho trabalhar para que não sejamos empobrecidos pela contação de uma história única.” Ecos do Discurso: Reações e Compromissos A apresentação da nova imortal foi conduzida por Lilia Schwarcz, quinta ocupante da cadeira número 9 e eleita em 2024. A historiadora enfatizou o impacto transformador de “Um defeito de cor” e estabeleceu um paralelo entre o passado e o presente, ao recordar as recentes operações policiais nas comunidades do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. Segundo Schwarcz, “As mães que hoje choram seus filhos nas favelas do Rio são ecos das mulheres que, no tempo da escravidão, também perderam os seus. Ana Maria traz essas vozes para dentro da literatura e, agora, para dentro da Academia.” A cerimônia de posse contou com a participação de destacadas figuras. Ana Maria Machado entregou o colar acadêmico, enquanto Gilberto Gil foi o responsável por conceder o diploma. A comissão de entrada foi composta por: Rosiska Darcy de Oliveira Fernanda Montenegro Miriam Leitão E a comissão de saída incluiu: Domício Proença Filho Geraldo Carneiro Eduardo Giannetti A acadêmica Miriam Leitão, ocupante da cadeira número 12, ressaltou o profundo simbolismo da posse de Ana Maria Gonçalves, observando que “Foi em 1977 que a primeira mulher sentou numa cadeira aqui, a Rachel de Queiroz. Eu sou a 12ª e a Ana é a 13ª. É muito pouco tempo na história da Academia. Mas a entrada dela tem uma camada de representatividade fundamental. Ela traz a força da mulher e da literatura negra para dentro desta Casa.” Leitão concluiu, afirmando que “A Academia está mudando o que precisa ser mudado e conservando o que precisa ser conservado. Mantém as tradições e se renova. Este é um dia histórico.” A atriz Regina Casé, em entrevista à Agência Brasil, expressou sua emoção: “Foi especialmente emocionante por ser a Ana, por ser uma mulher preta. O discurso dela nos lembra o quanto demoramos para ocupar esses espaços. É assustador pensar que só em 1977 uma mulher entrou aqui.” O ator e escritor Lázaro Ramos descreveu “Um defeito de cor” como “o livro de sua vida”, destacando sua capacidade de evocar sensações físicas e emocionais profundas. Ele afirmou que “É o Brasil reconhecendo talentos que demoraram a ser reconhecidos. A presença dela aqui é de justiça e diversidade. É o que a Academia merece e precisa.” Para ele, a presença da escritora na ABL representa um amadurecimento do país. Ovacionada por Ana Maria durante seu discurso, Conceição Evaristo definiu a posse como uma conquista coletiva: “A conquista de Ana é uma conquista que representa todas nós, mulheres negras e escritoras. É como se estivéssemos todas dentro da Academia hoje. Um defeito de cor cobre lacunas que a história deixa. Quando a história silencia, a literatura fala.” Evaristo também comentou a situação política e social, mencionando a violência no Rio de Janeiro e o papel da literatura em imaginar um futuro sem dor e exclusão. O imortal Gilberto Gil resumiu o sentimento da noite, elogiando a qualidade da obra da escritora. “É alegria e orgulho para a Academia. Ana Maria é uma das grandes artesãs da palavra, e sua escrita traz uma consciência profunda sobre o que é ser negro no Brasil. Ela representa o papel que os negros têm no processo civilizatório brasileiro”, declarou Gil. Após a cerimônia, os trezentos convidados participaram de um jantar no pátio externo da Academia, com um cardápio especial. A chef Dilma do Nascimento, conhecida como Dita, inspirou-se em “Um defeito de cor” para criar os pratos. Ela descreveu a emoção de ser convidada: “É uma emoção muito grande ser convidada para cozinhar aqui na Academia. Para nós, é um marco — um reconhecimento da África que veio para o Brasil. Baseei o cardápio na trajetória do livro, com pratos africanos e encerrando com as cocadas vendidas pelas personagens em busca da liberdade. Foi um prazer trazer essa história também pela comida.”