No cerrado mato-grossense, onde o sol inclemente castiga a terra vermelha, uma figura enigmática cruzou os anos 1950 e 1960 deixando um rastro de mitos e contradições. Antônio Joaquim Aragão, o Camisa de Couro, não foi apenas um pistoleiro - foi o espelho de uma sociedade dividida entre a lei e a justiça pelas próprias mãos, entre o medo e a admiração.
Nascido em 26 de setembro de 1934 no pequeno povoado de Lagoa Redonda, em Itabi (Sergipe), Aragão teve sua infância marcada pela violência do cangaço. Aos dois anos, enquanto Lampião e seu bando aterrorizavam o Nordeste, a família do futuro jagunço decidiu migrar para o sul do país, seguindo o fluxo de retirantes que buscavam trabalho nas novas fronteiras agrícolas.
Os primeiros registros de sua vida adulta mostram um homem em fuga. Após cometer um crime em Sergipe, percorreu Paraná, Goiás e o interior paulista, deixando um rastro de sangue pelos lugares que passou. Chegou em Três Lagoas no final dos anos 1950. Na cidade que então despontava como polo econômico, encontrou terreno fértil para seu "ofício": as disputas por terras e poder político criavam demanda constante por seus serviços.
Não demorou para que se integrasse ao que se convencionou chamar de "Sindicato do Crime" - uma rede organizada que unia fazendeiros, empresários e pistoleiros. Nessa estrutura, os mandantes (geralmente potentados locais) contratavam intermediários (como seu amigo João Carapina, açougueiro e dono de terras), que por sua vez recrutavam os executores. Camisa de Couro tornou-se o preferido para "trabalhos" mais complexos, cobrando entre 50 e 100 mil réis por serviço - uma fortuna para a época.
Embora não tivesse moradia fixa na cidade, "Camisa de Couro" se beneficiava da hospitalidade de amigos como João Carapina e Alberto Armeiro, que o hospedavam em suas residências durante suas curtas passagens por Três Lagoas. Suas visitas ao município eram rápidas e esporádicas, limitando-se a poucos dias antes de ele seguir viagem, ficando fora por intervalos que iam de vinte a trinta dias.
Antonio Joaquim Aragão, o Camisa de Ouro, à direita, ao lado de amigos no Bar Esporte (Foto: Acervo Zaguir | José Luiz Cezero)
O Dia a dia de um pistoleiro
Ao contrário do que se imagina, Aragão não vivia escondido. Frequentava bares como o Cinelândia e o Esporte, onde era tratado com respeito temeroso. Vestindo invariavelmente sua jaqueta de couro reforçada com placas metálicas - presente de um cliente agradecido - e portando dois revólveres Colt 38, mantinha uma rotina quase burocrática: das 18h às 23h nos bares, depois seguia para a casa de dona Zelina.
Camisa de Couro tinha uma relação próxima com dona Zelina, uma prostituta conhecida em Três Lagoas, que era não apenas sua amiga, mas também uma das poucas pessoas em quem ele depositava confiança. Naquele período em que a cidade vivia sob tensão e o temor de represálias e emboscadas era constante, Zelina representava um refúgio para o pistoleiro. Ao seu lado, ele compartilhava confidências e detalhes de sua vida pessoal. A amizade entre os dois ia além dos limites convencionais, fazendo dela não só uma companheira, mas também uma confidente que conhecia suas dores e segredos, revelando o lado humano de Camisa de Couro, frequentemente escondido por sua reputação de pistoleiro. Zelina esteve presente em diversos momentos de sua vida, inclusive testemunhando sua morte, um acontecimento que a afetou profundamente.
A imagem de Camisa de Couro está cercada de mistérios e narrativas lendárias. Enquanto alguns o enxergam como um herói do povo, protetor dos humildes e oprimidos contra as elites, outros o descrevem como um criminoso violento, responsável por espalhar o medo na região.
Ele era educado com as crianças, sempre distribuindo balas. Mas, segundo relato feito pelo saudoso jornalista Luiz Corrêa Filho (Luizinho), Camisa de Couro era temido até mesmo por policiais. “Eu era engraxate e ele frequentava a barbearia do meu pai na época. Um dia, ele cortou o cabelo, fez a barba e me chamou para ir até o bar Esporte com ele. No meio da rua, nos deparamos com um jipão da polícia. Na mesma hora, os policiais desceram e saíram correndo. O jipão ficou ligado. Só voltaram para pegar o carro depois que tinha certeza que o Camisa de Couro não estava mais lá”.
Crimes que abalaram a região
Acusado de envolvimento em vários crimes—a maioria por motivos passionais ou conflitos fundiários— Camisa de Couro também é apontado por moradores como autor de assassinatos de figuras políticas importantes de Três Lagoas. No entanto, não há comprovação histórica desses fatos. Entre os casos mais notórios atribuídos ao pistoleiro estão:
A noite do assassinato
Era uma quarta-feira comum quando o médico Monir Thomé e o fazendeiro Carlos, após ouvirem o apito do trem das 19h07 no bar Cinelândia, testemunhariam a cena que entraria para a história local. O jipe azul estacionado próximo à estação ferroviária seria o palco do desfecho trágico dessa história.
O destino do pistoleiro foi selado em 8 de novembro de 1961. Enquanto conversava com João Carapina em seu jipe azul estacionado próximo à Estação Ferroviária, dois homens bem-vestidos aproximaram-se e dispararam 12 tiros à queima-roupa. Um terceiro comparsa fazia vigia perto da igreja Santo Antônio. Os tiros ecoaram pela cidade, atraindo a atenção de moradores e curiosos. Na época, Três Lagoas tinha uma população pequena, e o crime rapidamente causou comoção.
O médico Monir Thomé, uma das primeiras pessoas a chegar ao local, usou sua lanterna médica para examinar as pupilas do ferido. "Estava claro que não havia mais nada a fazer", relatou anos depois. Padre João Tomes tentou ministrar a extrema-unção, mas a morte foi instantânea.
Sim, Camisa de Couro, vindo lá de Lagoa Redonda, município sergipano de Itabi, também era um jagunço que viveu, fez fama e foi assassinado, aos 27 anos de idade. Supõe-se que ele tenha sido vítima de uma queima de arquivo, porém o real motivo de sua morte permanece um mistério.
Seu corpo foi velado na casa de seu amigo João Carapina, e o funeral, realizado no cemitério municipal, reuniu uma multidão – tornando-se o maior da história da cidade até então. Pessoas compareceram a pé, em carroças, charretes e até de avião. Moradores de cidades vizinhas também presenciaram o último adeus àquele que, ainda em vida, já era uma lenda.
O maior funeral da história local
O velório na casa de Carapina e o enterro no Cemitério Santo Antônio atraíram mais de mil pessoas. Durante o velório, o episódio que mais chamou atenção foi a chegada da fazendeira Madalena Vieira Moreira, viúva do deputado e ex-prefeito de Mirassol (SP) - Anísio José Moreira. Revoltada com a penhora de suas terras, Madalena teria adiantado 1.000 cruzeiros ao pistoleiro Camisa de Couro para garantir sua ação violenta. Ela desceu de um pequeno avião para confirmar que o pistoleiro realmente estivesse morto e exigiu que a sepultura, já quase selada, fosse reaberta — pedido atendido pelo coveiro local em troca de um pagamento generoso. Após constatar sua morte, a viúva retornou ao avião e partiu imediatamente.
Madalena era conhecida por sua ligação com Camisa de Couro e por seu envolvimento no assassinato do juiz Jaime Garcia Pereira, ocorrido dias após o enterro do pistoleiro. Esse vínculo ampliou a repercussão da morte de Camisa de Couro, transformando-o em uma figura ainda mais mítica, tanto em Três Lagoas quanto além de suas fronteiras.
O tiro que saiu pela culatra
A morte de Camisa de Couro foi marcada por tentativas de apagar seu legado. Em meio à comoção popular, o crescente interesse pela figura do pistoleiro levou o fotógrafo local Foto Zaguir a comercializar imagens dele. No entanto, as autoridades agiram rapidamente: apreenderam os negativos e proibiram a venda de qualquer fotografia de Camisa de Couro. A medida, liderada pelo delegado Antônio Marques, tinha como objetivo evitar a exaltação de um criminoso e impedir sua glorificação. A censura, porém, surtiu o efeito oposto: o interesse público aumentou, alimentando ainda mais o mistério e a mítica em torno de sua figura.
Hoje, mais de 60 anos após sua morte, Camisa de Couro permanece uma figura paradoxal. Seu túmulo no Cemitério Santo Antônio recebe em média 283 visitas mensais, segundo dados de 2023. Pesquisa acadêmica da historiadora Beatriz Azevedo Araújo (PUC-SP), realizada em 2008, revelou na época que 72% dos treslagoenses ainda o associavam a "justiça", não a bandidismo.
A construção da Usina Hidrelétrica de Jupiá, que coincidiu com seus anos de atuação, criou uma cidade dividida: de um lado, operários que temiam a violência; de outro, uma sociedade que convivia com pistoleiros como parte da paisagem. Vereadores da época protestavam contra o "banditismo que mancha nossa imagem", mas pouco faziam para combatê-lo.
A figura de Camisa de Couro inspirou várias obras culturais, como o livro: “Camisa de Couro” e a densa trama das relações de poder que a criação de suas imagens na cidade de Três Lagoas, MS, 1959-1962″ (Beatriz de Castro Sanches Azevedo).
Na memória coletiva, Camisa de Couro encarna o espírito de uma época em que a lei frequentemente falhava, e homens armados ditavam suas próprias regras. Sua história - entre o mito e a realidade cruel - continua a fascinar, lembrando-nos que mesmo os personagens mais sombrios podem se tornar espelhos das contradições de seu tempo.
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