Quinta, 30 de Outubro de 2025

Letalidade da Operação Contenção foi 'planejada para matar', diz pesquisador

Modelo de guerra particular busca o extermínio, não a prisão de criminosos no estado

30/10/2025 às 12:49
Por: Redação

A Operação Contenção, iniciada na terça-feira (28) pelas polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro, já registra mais de 120 mortes na capital fluminense. A Agência Brasil consultou especialistas em direitos humanos e organizações não governamentais, que há anos analisam o campo da segurança pública, para compreender os métodos e os desdobramentos dessa ação.

Para Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz, a operação repete uma abordagem antiga no Rio de Janeiro, segundo a qual o combate ao crime organizado se dá por meio de intervenções violentas. Essas ações, afirma ela, causam instabilidade e levam a violência para comunidades já bastante vulneráveis.

Ela sustenta que esse modelo vitima a população, prejudica os serviços públicos e coloca em risco a vida de crianças, sem, contudo, desestruturar efetivamente o cerne do crime organizado.

“Ainda que a liderança esteja presa, ela [a ação] gera enfim, um custo muito alto para aquela comunidade que já sofre diariamente com toda a falta de acesso aos direitos e aos serviços públicos.”

A pesquisadora aponta que a operação também desconsiderou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. Esta ADPF estabelece diretrizes cruciais do Supremo Tribunal Federal (STF) para o planejamento e a execução de políticas de segurança pública no estado, diretrizes que foram alvo de críticas do governador Claudio Castro na terça-feira.

Carolina Ricardo criticou, ademais, falhas no planejamento das ações. Ela mencionou o envio de policiais inexperientes para atuar ao lado do grupo responsável pela atuação ostensiva, que demandava maior complexidade. Além disso, a violência observada nos corpos das vítimas indicou, conforme ela, “nenhum respeito aos direitos básicos”.

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“Se a gente fosse um país sério, uma operação séria, a gente precisaria analisar cada caso de morte para entender qual foi a situação. Mas, olhando o todo, acho que dá para dizer que foi uma operação que viola, no mínimo, os preceitos da ADPF 635”, diz a porta-voz do Instituto Sou da Paz.

A analista destacou a falta de um esforço mais incisivo para barrar a entrada de armamentos pesados – como os utilizados pelos criminosos para confrontar os policiais. Também faltou, segundo ela, um trabalho para cercar e descapitalizar as facções, atingindo suas fontes de recursos e os mecanismos de lavagem de dinheiro. Para Carolina, apenas após o enfraquecimento desses grupos é que se deveria iniciar operações ostensivas. “Mas isso demora e rende menos capital político”, completou.

A pesquisadora interpreta que essa modalidade de operação se alinha a uma lógica e a um cálculo político.

“Essa lógica de operação com alto nível de letalidade, infelizmente, é um modo de fazer política. Cláudio Castro tem usado isso recorrentemente. E isso, em alguma medida, infelizmente, reverte positivamente, porque parte da sociedade aceita e compra esses resultados como se eles fossem positivos”, conclui.

Ela traçou um paralelo com as operações do governo paulista, que seguem uma lógica política similar, embora com diferentes táticas no território, dada a distinta realidade entre o Rio de Janeiro e a Baixada Santista.

Carolina observou que outro aspecto marcante desta operação foi a surpreendente reação do crime organizado, tanto pelo armamento empregado quanto pela intensidade da resposta da facção. Ambos os fatores, de acordo com a pesquisadora, sugerem um planejamento insuficiente.

Um Desastre Planejado

Para Luís Flávio Sapori, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a opinião pública começa a perceber que os problemas da operação não se restringem ao número de mortos. Embora esse número seja, sem dúvida, inédito e injustificável, ele não estaria fora do cálculo inicial da ação.

“Esse modelo de atuação da polícia no Estado, tanto militar quanto civil, de enfrentamento direto, de troca de tiros, de fazer o enfrentamento ao crime organizado como uma guerra particular, com o objetivo de exterminar o suposto inimigo, é uma técnica, uma tática de enfrentamento. Isso é característico do Rio de Janeiro há décadas."

Sapori explica que essa metodologia operacional tem sido uma constante entre sucessivos secretários de segurança, comandantes de polícia e governadores que passaram pelo Rio de Janeiro. Ele também estabelece uma conexão entre a violência policial e a corrupção dentro da corporação.

"Cláudio Castro é mais um nessa linha de tempo de uma classe política que sempre deu essa diretriz clara às suas polícias. Isso explica porque, historicamente, a polícia do Rio sempre foi uma das mais violentas do Brasil, com um dos maiores grau de letalidade, e não é por acaso também uma das mais corruptas do Brasil. A polícia muito letal é também uma polícia muito corrupta, conforme os estudos científicos evidenciam no mundo inteiro.”

Quando o governador, máxima autoridade das polícias estaduais, endossa esse tipo de ação ostensiva e violenta, ela se torna um recurso operacional rotineiro, legitimado e naturalizado, resultando em um nível de vitimização inaceitável.

“Mas isso não é só no Rio de Janeiro, outros governos estaduais no Brasil estão também no mesmo caminho: é o caso da Bahia”

O resultado disso são cenas impactantes e cruas, como os corpos enfileirados no chão e as dezenas de mortos na comunidade da Penha. Para Sapori, trata-se de uma “cena dantesca, é uma cena bárbara, quase que medieval”, que deixa profundas cicatrizes na comunidade.

Na Praça São Lucas, na Penha, dezenas de corpos foram enfileirados nesta quarta-feira, de acordo com imagem da Tomaz Silva/Agência Brasil.

O pesquisador ressalta que, embora a violência afete o país inteiro, nas comunidades esse impacto é diário e intensifica a sensação de insegurança dos moradores. Eles, que já sofriam com a violência da dominação das facções, passam a enxergar a polícia como uma alternativa insustentável.

“Ela se apresenta como uma alternativa de extermínio, de antagonismo com a comunidade, de desconfiança dos moradores.”

Sapori ainda questiona o desfecho abrupto da operação e suas possíveis repercussões: “A operação acabou, as polícias voltaram para suas bases. Significa o quê? Se o Comando Vermelho não tiver capacidade de retomar seu poder bélico e presencial com novos quadros, outras facções podem se apoderar desses territórios. Possivelmente o Terceiro Comando Puro ou mesmo milícias da Zona Oeste.”

Para Sapori, esse vácuo já era previsto, embora não esteja claro o que o governo antevê ou como isso ocorrerá. A letalidade, ele afirma, não foi um erro.

“Foi planejada com o objetivo de matar, exterminar, traficantes do Comando Vermelho. Foi para isso que ela foi planejada. Ela não foi planejada para prender criminosos. Ela não foi planejada para cumprir mandados de prisão, como diz o governador. Ela não foi planejada e operacionalizada para prender as lideranças do Comando Vermelho. Foi para exterminar o máximo possível de membros do Comando Vermelho”, detalha o analista.

Mesmo que a operação tenha atingido o que ele considera seu verdadeiro objetivo, ela não pode ser vista como um sucesso por nenhuma métrica de políticas públicas. Para Sapori, o êxito no combate ao crime organizado decorre da capacidade de fragilizá-lo financeiramente, militarmente e politicamente, além de retomar os territórios sob seu domínio.

Indícios de Execução

A Agência Brasil conversou também com Glaucia Marinho, diretora-executiva da ONG Justiça Global. Ela esteve, na quarta-feira, nos complexos da Penha e do Alemão, locais das operações, e dialogou com as famílias afetadas.

“Nós da Justiça Global acreditamos que a operação empreendida pelas polícias militar e civil na última terça-feira foi um massacre. É inadmissível que qualquer ação do Estado resulte em mortes ou situações de barbárie e tortura. A gente sempre lembra que não existe pena de morte no país e as denúncias dos moradores apontam para violações de direitos humanos de diversas ordens."

Glaucia salientou os impactos da ação sobre os moradores tanto do Complexo do Alemão quanto da Penha.

"Muitos não conseguiram sair de casa para trabalhar ou retornar do seu trabalho em situação de segurança. Você fica com um trauma e medo depois por passar um dia inteiro em uma situação de tiroteio e violência. Os moradores ainda foram obrigados a retirar, e eu digo obrigados porque isso era um papel do Estado, a recolher cerca de 70 corpos. A gente passou o dia inteiro lá e não houve perícia no local. As violações e ilegalidades elas continuam acontecendo”, relatou Marinho.

Conforme ela, parte das vítimas fatais foi encontrada com braços e pernas amarrados, o que sugere que podem ter sido executadas. A ONG tem denunciado repetidamente as políticas de segurança pública no estado como de orientação genocida e estruturalmente racista, pois “é pensada para controlar e punir pessoas pobres, moradores de favela, isso não pode acontecer”, denunciou a ativista.

OAB e Humans Rights Watch

A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro “repudiou veementemente as ações policiais realizadas”. A nota da entidade afirma que, “embora se reconheça a necessidade da atuação firme, diligente e coordenada do Estado na preservação da ordem pública, (...) não se pode admitir que tais operações se desenvolvam de forma a colocar em risco a vida, a integridade e as liberdades fundamentais da população carioca e fluminense, como lamentavelmente se verificou, com restrições arbitrárias ao direito de circulação e ao livre exercício das atividades cotidianas”.

A OAB fluminense também instou o governo a permitir o controle social e institucional das ações estatais, garantindo que as políticas de segurança sejam executadas dentro dos preceitos do Estado Democrático de Direito, com total respeito aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana.

Por sua vez, a Comissão de Segurança Pública da OAB de São Paulo criticou os questionamentos do governador Claudio Castro à ADPF 635. O órgão reiterou a importância de que as operações policiais observem os preceitos constitucionais fundamentais, “sob risco de que elas se convertam em oportunidades para o arbítrio e para o uso indiscriminado da força”.

Adicionalmente, a comissão paulista solicitou a abertura de investigações “rigorosas e independentes” sobre a operação. Pediu ainda que o governo estabeleça “uma revisão urgente” das estratégias de segurança pública adotadas no estado, as quais “devem sempre priorizar a proteção da vida e o respeito aos direitos humanos”.

Em uma declaração pública, César Muñoz, diretor da Human Rights Watch (HRW) no Brasil, solicitou a intervenção direta do Ministério Público Estadual para investigar as mortes e apurar o planejamento e as decisões da cúpula da polícia e das autoridades do Rio envolvidas.

“A sucessão de operações letais que não resultam em maior segurança para a população, mas que na verdade causam insegurança, revela o fracasso das políticas do Rio de Janeiro”.

Para o HRW, as políticas de segurança deveriam integrar as próprias comunidades e outros atores sociais. Além disso, o trabalho policial deveria ser pautado por dados precisos sobre a atividade criminal, priorizando a investigação e a inteligência, e visando à desarticulação do tráfico de armas, da lavagem de dinheiro e dos vínculos entre grupos criminosos e agentes do Estado.

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